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"Quando o homem aprender a respeitar até o menor ser da criação, seja animal ou vegetal, ninguém precisará ensiná-lo a amar seu semelhante" (Albert Schweitzer)
"Eu sou a favor dos direitos animais bem como dos direitos humanos. Essa é a proposta de um ser humano integral". (Abraham Lincoln)

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Do Código Estadual de Proteção Animal

Por Pensata Animal
Revista dos Direitos dos Animais

I - Introdução

Nem todas as normas que enunciam dispor sobre proteção aos animais cumprem esse propósito, ou foram editadas com tal desígnio.

Inspiradas por intentos alheios aos protetivos, há leis que objetivam excluir a ilicitude de condutas cruéis, como as que legitimam o sistemático extermínio de cães pelos Centros de Controle de Zoonoses. Exemplo típico é o da Lei Federal nº 5.197/67, que a despeito da menção feita em seu preâmbulo sobre proteção à fauna, constitui-se em norma permissiva da perseguição e da morte de animais, ao legislar sobre a caça.

Outras reproduzem as autênticas e antigas normas protetivas já em vigor, sem introduzir obrigação louvável alguma em favor de seus supostos tutelados.

A alusão à proteção dos animais, estampada no preâmbulo da norma, não basta para caracterizá-la como protetiva. Sem uma análise mais apurada de seu conteúdo, pode-se tomar como benéfica norma que venha em prejuízo dos animais.

É o caso do denominado "Código Estadual de Proteção aos Animais", estatuído pela Lei Estadual nº 11.977/2005, de autoria do Dep. Ricardo Trípoli. Exceção feita à entrega dos animais recolhidos pelo Centro de Controle de Zoonoses às instituições de ensino e de pesquisa, vedada pela nova lei por se constituir em prática já condenada pelos próprios sanitaristas, o tal Código representa um retrocesso à causa dos que protegem os animais, sobretudo à sua tutela em juízo.

II - Da impossibilidade de apreensão de animal vitimado por maus-tratos

Basta dizer que o art.45, §2º prevê a perda da guarda do animal vítimado por maus-tratos, apenas depois da segunda reincidência e só em caso de infração continuada. Segunda reincidência importa em um terceiro flagrante, exigência tão improvável de ser atendida, que torna o resgate do animal um evento quimérico. E o dispositivo ainda impõe que a conduta de maus-tratos se dê por meio de infração continuada, que significa a ocorrência de dois ou mais crimes da mesma espécie , praticados nas mesmas condições de tempo, de lugar e de forma de execução.

Vê-se que a apreensão do animal não será motivada por um só ato de maus-tratos, por mais grave que seja, já que a lei reclama infração continuada. Exige-se, ainda, a constatação legal por três vezes, em face da menção à segunda reincidência. Ausentes tais requisitos, ainda que haja sujeição a diferentes formas de maus-tratos, e em ocasiões diversas, o animal permanece com seu guardião.

III - Da livre experimentação animal

E o mesmo Código autoriza a realização de experimentação animal que cause dor, estresse, ou desconforto de alta intensidade, desde que com utilização de anestesia. É o que se depreende, a contrario sensu, de seu artigo 32.

Convém lembrar que a Lei Federal nº 9.605/98 pune o procedimento doloroso para o qual haja método alternativo, independentemente, de estar o animal anestesiado, ou não. Ademais, a anestesia produz efeitos durante um restrito período de tempo. Cite-se, a título de ilustração, a retirada do maxilar de cães para estudo de suas decorrências, como foi feito em uma Universidade do sul do país. Ainda que tenham sido anestesiados durante o procedimento cirúrgico, nada poderia livrar os animais do extremo padecimento a que foram expostos até o final do malfadado estudo, quando foram mortos.

Ainda quanto à experimentação animal, em seu art. 38, o Código prevê a utilização de um número reduzido de animais, que serão submetidos à menor intensidade de sofrimento possível. É a instituição legal dos 3R‘s (replacement, reduction, refinement) , conceito proposto por cientistas com o falacioso objetivo de buscar técnicas "mais humanas" para a sujeição do animal à experimentação. A proposta dos 3R's preconiza a substituição do animal, quando viável, por material sem sensibilidade; a redução do número de animais utilizados e o refinamento, que seria a diminuição do estresse e do sofrimento ao mínimo possível.

Longe de combatê-la, a experimentação animal é proclamada como um mal necessário pela proposta dos 3R's, que não se constrange em sugerir que se restrinja o número de animais que devem padecer e morrer.

E a menção que faz o Código sobre poupar os animais de sofrimento, embasada na proposta de refinamento dos 3R's, só ludibria quem desconhece os macabros procedimentos efetivados em testes, em pesquisas, e nas instituições de ensino. Como bem assinalou Bernhard Rambeck, em "O Mito das Experiências em Animais", " o sofrimento do animal usado nos experimentos já começou bem antes da experiência, quando é confinado, criado e transportado em condições totalmente estranhas à espécie. Não existem experiências toxicológicas inofensivas para o animal ! Gostaria de saber como experiências toxicológicas - durante as quais os animais são envenenados de forma mais ou menos rápida - podem decorrer sem tortura e dor. Não existe experiência nas áreas de toxicologia, cirurgia, radioterapia, etc, sem sofrimento terrível para o animal atingido! Ainda hoje a experiência representa para o animal um sofrimento terrível, que normalmente só termina com a morte."

IV - Da legalização da morte nos Centros de Controle de Zoonoses

Em seu artigo 12, o Código legaliza a eliminação de animais recolhidos pelo Centro de Controle de Zoonoses, ao vedar o "sacrifício" de animais por métodos cruéis, ou que provoquem dor, estresse ou sofrimento. Vale dizer que o animal pode ser sacrificado, desde que por meio não cruel, sem dor, estresse ou sofrimento, como se existisse sacrifício não cruel; como se a morte já não fosse o pior castigo.

Da ultrapassada e ineficaz política de saúde pública decorre o crescente número de cães e de gatos, que pelas ruas vagam, padecendo dos males de que se tornam alvo os animais abandonados, uma vez que ainda pretende-se controlar as zoonoses e a população de animais adotando para tal o inclemente método de eliminação sistemática e indiscriminada de animais encontrados nas ruas.

Era o que recomendava o 6º Informe Técnico da Organização Mundial de Saúde de 1973, já em desuso na maior parte do mundo, pois com fulcro na aplicação desse método em vários países em desenvolvimento, a OMS concluiu por sua ineficácia, enunciando que não há prova alguma de que a eliminação de cães tenha gerado um impacto significativo na propagação da raiva ou na densidade das populações caninas, por ser rápida a renovação dessa população, cuja sobrevivência se sobrepõe facilmente à sua eliminação.

Desde a edição de seu 8º Informe Técnico de 1992, a OMS preconiza a educação da comunidade e o controle de natalidade de cães e de gatos, anunciando que todo programa de combate à raiva deve contemplar o controle da população canina, como elemento básico, ao lado da vigilância epidemiológica e da imunização.

Recente publicação da OPAS apoia o método de castração e devolução dos animais à comunidade de origem, declarando que a eliminação de animais não só foi ineficaz para diminuir os casos de raiva, mas aumentou a incidência da doença.

Muito embora a OMS tenha recomendado urgência às autoridades responsáveis em revisar a política adotada, o Brasil ainda segue o método da captura seguida de morte, alegando estar praticando "eutanásia", que significa o procedimento pelo qual se proporciona a morte sem sofrimento a um doente atingido por afecção incurável. Desse termo também se vale o Código, no parágrafo único de seu art.12, ao descrever o que se considera método aceitável para provocar a morte do animal, à que a lei denomina de "eutanásia".

Em virtude do cristianismo, cuja doutrina apregoa ser a vida um bem que só a Deus é permitido dispor, condena-se qualquer atentado à vida humana. Assim, não só o homicídio, mas a eutanásia, o aborto e o suicídio são práticas reprováveis. Indagações morais acerca do caráter sagrado da vida, incoerentemente, permanecem adstritas à espécie humana, que permite-se suprimir a vida de criaturas pertencentes a outras espécies, sem questionamento algum.

Se inspirada por motivos nobres, o que ocorre quando se põe fim à uma dor sem esperança, a eutanásia é prática defensável e medida de compaixão. Que a atual política pratica a eutanásia é afirmação que não resiste à uma análise menos superficial, uma vez que a morte desses animais não é efetivada por outro motivo senão o de eliminar as suas vidas, em um gesto que nada tem a ver com morte serena, ou com abreviação de sofrimento. Conforme confessado pelo próprio Instituto Pasteur, em seu Manual Técnico de nº 6, p.25, é freqüente a eutanásia de animais aparentemente sadios ou considerados indesejados.

De gritante eufemismo, o termo "eutanásia" é empregado para camuflar o verdadeiro propósito de extermínio indiscriminado de animais indesejados a que procedem os CCZs, sob o pretenso fito de controlar as zoonoses. Longe da moral elevada que inspira a eutanásia, pratica-se um autêntico e indigno massacre sistemático de animais.

Nesse tocante, o Código é a primeira lei não municipal permissiva de matança e que contraria expressa disposição de lei federal. É que o art.13 do Decreto Federal nº 24.645/34, que tem força de lei federal, condena a eliminação de animais, a menos que sejam ferozes ou padeçam de moléstia perigosa.

É necessário salientar que o referido decreto permanece em vigor, uma vez que o Decreto nº 11, de 18 de janeiro de 1991, que pretendeu revogá-lo, foi tornado sem efeito pelo Decreto s/nº de 29 de novembro de 1991. Em virtude de sua natureza de lei, o Decreto 24.645/34 não pode ser revogado por decreto, mas tão só por meio de lei federal que lhe seja posterior. Excetuando seu sistema de penas, o Decreto em comento vigora, e com força de lei federal.

Poucos se dão conta, contudo, de que a matança sistemática distoa da legislação pátria, uma vez que a tutela jurídica conferida ao animal não se restringe à sua integridade física, mas também, e sobretudo, à vida, por se constituir em pressuposto básico de sua própria existência, sem a qual não haverá bem-estar e integridade física a serem tutelados.

"Quem pode o mais pode o menos" é princípio de Direito que ninguém desconhece, e do qual todos nos valemos em nosso cotidiano. Pudesse o animal ser morto, e a legislação não vedaria sua sujeição a maus-tratos; não há razão para proteger a integridade física de quem não se tutela a vida. Se fosse permitido provocar a morte, que é o mais, por que a lei zelaria pelo menos?

É que a tutela aos animais está inserida em nosso ordenamento jurídico, de forma a reconhecê-lo como ser vivente , capaz de sofrer, e não como bens dos quais pode o homem dispor. Tanto é assim que a norma constitucional traçada pelo artigo 225, §1º, inciso VII, vale-se do termo " crueldade", e a Lei de Crimes Ambientais contempla figuras típicas como "praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar". Bens de consumo não sofrem maus-tratos, ferimentos, mutilações, nem tampouco se submetem à crueldade. Resulta daí a inconstitucionalidade das leis municipais permissivas da matança, mesmo porque se a Constituição da República veda a submissão de animais à crueldade, por óbvio que não consente na supressão injustificada de suas vidas.

Zelar pela integridade física dos animais, insurgindo-se contra as práticas de maus-tratos, mas consentir no extermínio de saudáveis é a grande incoerência de alguns segmentos do Movimento de Proteção aos Animais.

V - Dos animais não domésticos em Circos

Ao incluir o dispositivo que veda a apresentação, ou a utilização, de animais nos espetáculos circenses no capítulo reservado aos animais domésticos, o Código, em seu art. 21, tornou-se permissivo da utilização, em Circos, de animais não domésticos, que, aliás, constituem a maioria dos bichos exibidos por circenses.

VI - Da liberação de outras condutas cruéis

Implicações ainda mais graves decorrem do fato de não estarmos diante de uma simples lei, mas de um Código, que é a denominação que se dá a todo conjunto de leis enfeixadas num só corpo e destinadas a reger a toda a matéria. O que não estiver em seu texto está excluído da esfera de proteção legal aos animais, já que Código é o que rege toda a matéria.

Seguem liberadas, por conseguinte, as condutas cruéis não contempladas pelo Código, assim como permanecem livres outras práticas em relação as quais não foram impostas restrições, a despeito de serem mencionadas no texto legal, tais como a caça, a pesca e a tração de veículos por animais.

VII - Da mera repetição de medidas já previstas em lei

Muitos dos dispositivos louváveis contidos no Código reproduzem texto de lei federal já em vigor, editadas pelo Decreto Federal nº 24.645/34, que tem força de lei por ter sido editado em período de excepcionalidade política, quando o poder legiferante pertencia ao Chefe de Governo. É o caso das determinações estabelecidas no artigo 2º, incisos I a VII, artigo 18, incisos I e II, e artigo 20, bem como as referentes ao transporte de animais e às atividades de tração e carga.

Convém lembrar que, na década de 1930, não se cogitava da vedação de atividades de tração animal, até então tidas por imprescindíveis, motivo por que, visando estabelecer regras que viabilizassem a proteção dos animais explorados pelo setor, foi a atividade regulamentada pelo pioneiro Decreto.

Nesse sentido, merece ser registrado que a vedação à tal atividade bem poderia ter sido enunciada pela norma que surgiu com a pretensiosa aspiração de ser um Código de Proteção aos Animais.

Mesmo ao lhe reproduzir as medidas de proteção, o Código fica aquém do Decreto 24.645/34. Cite-se, como exemplo, a questão da venda de animais. Ao passo que o Decreto, em seu art. XXIII, de forma pioneira, reporta-se à comodidade do animal, ao vedar a conduta de "ter animais destinados à venda, em locais que não reunam as condições de higiene e comodidade relativas", o Código, em seu art.2º, VI, veda a prática de "vender ou expor à venda animais em áreas públicas sem a devida licença de autoridade competente".

Como já sustentado em outro ensejo, o Decreto veda a matança de animais sadios e não agressivos, autorizada pelo Código em comento.

Sua terminologia também lhe denuncia o caráter antropocêntrico, referindo-se a animais como seres subjugados, ao definir, logo no art.1º, animais domésticos como "os que não repelem o jugo humano" . Sem falar na expressão "animais criados para consumo", título da seção IV, que evidencia a comunhão do Código à censurável visão utilitarista dos animais.

Também as determinações sobre abate de animais (art.19) reproduzem dispositivos de lei estadual paulista já em vigor (Lei nº 7.705 de 19 de fevereiro de 1992).

VIII - Do risco à causa

Tamanha foi a divulgação que mereceu a lei que instituiu o "Código de Proteção aos Animais", sobretudo em virtude da campanha eleitoral de seu autor a deputado federal, que não só os protecionistas, mas empresários e pecuaristas, formaram a firme crença de que a tal lei introduzia em nosso ordenamento jurídico inovadoras medidas de proteção aos animais. A título de exemplo, pode-se apontar a vedação referente à privação da liberdade de movimentos, consignada no art.18, inciso I, do Código, já prevista por lei federal desde 1934, por meio do art.3º inciso, II, do Decreto Federal nº 24.645/34.

Em tal matéria, a má compreensão não surpreende. É que muitos desconhecem a legislação vigente, ou não a interpretam de forma correta. É extenso o texto do Decreto Federal de 1934, cujo artigo 3º descreve as condutas que tipifica, em seus trinta e um incisos. Longo também o atrapalhado Código; muitos de seus defensores jamais enfrentaram a àrdua leitura de seus cinqüenta e sete artigos.

Convencidos de que o Código representa uma evolução ímpar, e não um escandaloso retrocesso, ativistas pelos direitos dos animais festejaram sua edição, enquanto seus opositores trataram da propositura de duas ADINs (ação direta de inconstitucionalidade).

Já esfacelado pela suspensão liminar de grande parte de seus dispositivos, o Código prossegue em prejuízo da causa, pois se os Tribunais reconhecerem a inconstitucionalidade dos artigos impugnados, o próprio Decreto será considerado como um diploma legal não recepcionado pela Constituição da República.

Só a revogação imediata do malogrado Código, o que fará com que as ADINs percam o objeto, impedirá o iminente desastre.

Preocupante também é a apresentação de um projeto de lei, de autoria do mesmo deputado, destinado a instituir um Código Federal de Proteção aos Animais, que, aliás, prevê a eutanásia imediata de animais com fraturas, hemorragias, impossibilidade de locomoção, mutilação, feridas extensas ou profundas, prolapsos, entre outros e para filhotes lactentes sem as mães.

Se aprovado por lei federal, por reger toda a matéria, o tal Código revogará o Decreto nº 24.645/34 e o art.32 da Lei 9.605/98, normas protetivas, que de tão genuínas, são suficientes à defesa de seus tutelados.

E tudo por nada, à medida que é farta a nossa legislação pátria protetiva. Como ensina Marco Aurélio Mendes de Faria Mello "são dispensáveis outras leis; imprescindíveis são homens que as cumpram."

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